“Que bem vos fiz para me quereres tão mal?” – Este dito popular me impressionou muito quando o ouvi pela primeira vez. De fato, ando pensado nas regras de reciprocidade e no que chamamos de gratidão.
Bronislaw Malinowski, um dos pais fundadores da antropologia, viveu entre os nativos das ilhas Trobriand, no Pacífico Ocidental, de 1915 a 1918, e descreveu o ritual chamado Kula, que consiste na troca de braceletes e colares. Os nativos trocam estes presentes com parceiros de outras ilhas e assim estabelecem a circulação de bens, afeto, amizade, aliança e reciprocidade. As dádivas trocadas são os elos que permitem as relações sociais entre aqueles que, sem isso, seriam distantes e até inimigos.
Marcel Mauss e, depois dele, Lévi-Strauss, analisando a troca ritual do Kula, descobriram as regras de reciprocidade, alicerce da vida em sociedade. Sem as trocas e sem as regras que as sustentam, não é possível vida social. As regras do dar e do receber são universais. Aquele que dá o presente espera receber em troca um presente de igual valor, mas fica sempre numa situação de insegurança e inferioridade em relação àquele que recebe, pois este pode negar o presente dado e com isso a amizade e a aliança. Quando o presente é negado corre-se o risco de rompimento da relação e até de guerra. No entanto, a reciprocidade não precisa ser imediata e equilibrada. Há trocas complexas e indiretas nas quais a reciprocidade não é feita entre os mesmos parceiros.
A frase com a qual iniciei este post expressa a ruptura da regra da reciprocidade, do princípio que regula a troca – dar, receber e retribuir, pois aquele que dá pode receber como retribuição o ódio, a negação ou a não reciprocidade daquele que foi beneficiado. A isto damos às vezes o nome de ingratidão, que também faz parte do sistema e demonstra o outro lado da moeda, ou seja, a dádiva aceita e trocada, a base da aliança.
Vou contar uma história que marcou minha vida e me fez pensar nestas regras. Meu pai foi um dos fundadores da física no Brasil e quis a história que ele fosse convidado a integrar a comissão que estabeleceu os princípios para a criação do Conselho Nacional de Pesquisa, hoje Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), cuja principal função era, como até hoje, o apoio à pesquisa científica. A lei n° 1.310 de 15 de janeiro de 1951, que criou o CNPq, estabeleceu a responsabilidade deste órgão pelo monopólio estatal do comércio externo de minerais estratégicos e fixou restrições à venda dos mesmos. Uma das riquezas retiradas das praias do litoral brasileiro, e levada para o exterior sob forma de lastro de navio – sem que o Estado nada recebesse em troca – foi a areia monazítica que contém urânio, tório, bem como outros elementos químicos raros de elevado valor para várias aplicações tecnológicas. A lei coibiu esta prática e marcou o início da luta pela regulamentação das atividades de extração, beneficiamento e comercialização dos minerais estratégicos brasileiros, dentre os quais a monazita.
O tema da proteção aos minérios produzia intensos debates desde o final dos anos 1940 e se intensificou nos anos 1950 com a luta pelo uso pacífico da energia atômica. Havia posições divergentes e o grande poeta e empresário Augusto Frederico Schmidt era um dos envolvidos na discussão liderada por físicos, químicos, geólogos e técnicos. O poeta e o físico Joaquim da Costa Ribeiro trilhavam caminhos diversos na discussão até que, no meio do furacão, os dois se encontraram e meu pai levantou-se de onde estava para cumprimentar Schmidt, fazendo deste gesto um sinal de aliança e mostrando-lhe que as divergências não significavam o rompimento da amizade e admiração que sentia pelo grande poeta.
Quando meu pai faleceu, aos 54 anos, Schmidt, um dos que fizeram o discurso fúnebre, mencionou outra ocasião em que estivera naquele mesmo cemitério, no enterro de minha mãe, falecida prematuramente, três anos antes. O poeta lembrou que entre todos os muitos amigos presentes à cerimônia de adeus, meu pai, na volta do funeral, o escolhera para acompanhá-lo, e falou sobre o amor e sobre a dor de meu pai naqueles minutos em que o amparara. Na saída do cemitério, logo depois daquelas palavras incomensuravelmente belas, o poeta chamou meu irmão mais velho que se tornou, com apenas 24 anos, tutor dos quatro irmãos menores de idade e disse: “Sergio, que o supermercado Disco seja a sua dispensa.” Schmidt era dono dessa grande rede de supermercados do Rio de Janeiro.
Foi assim que os filhos de Joaquim da Costa Ribeiro conseguiram sobreviver depois da morte do pai tendo o pão de cada dia ofertado pela generosidade do poeta até sua morte. Nunca pude retribuir a dádiva como gostaria e como seria o correto enquanto Augusto Frederico Schmidt viveu. Até hoje nele penso com enorme gratidão e fui pela vida tentando retribuir o presente, na medida das minhas posses, numa reciprocidade indireta. O poeta me deu a possibilidade de sobreviver materialmente e me dedicar aos estudos com mais facilidade. No entanto, os anos em que a nossa dispensa foi o Disco me legaram, mais do que o pão de cada dia, o sentimento de humildade do receber e a necessidade de retribuir.
Mas nem sempre a história tem esse final. Há muitos casos de rompimento da reciprocidade o que reforça a sabedoria do dito popular: “Que bem vos fiz para que me quereres tão mal?”
Bronislaw Malinowski, um dos pais fundadores da antropologia, viveu entre os nativos das ilhas Trobriand, no Pacífico Ocidental, de 1915 a 1918, e descreveu o ritual chamado Kula, que consiste na troca de braceletes e colares. Os nativos trocam estes presentes com parceiros de outras ilhas e assim estabelecem a circulação de bens, afeto, amizade, aliança e reciprocidade. As dádivas trocadas são os elos que permitem as relações sociais entre aqueles que, sem isso, seriam distantes e até inimigos.
Marcel Mauss e, depois dele, Lévi-Strauss, analisando a troca ritual do Kula, descobriram as regras de reciprocidade, alicerce da vida em sociedade. Sem as trocas e sem as regras que as sustentam, não é possível vida social. As regras do dar e do receber são universais. Aquele que dá o presente espera receber em troca um presente de igual valor, mas fica sempre numa situação de insegurança e inferioridade em relação àquele que recebe, pois este pode negar o presente dado e com isso a amizade e a aliança. Quando o presente é negado corre-se o risco de rompimento da relação e até de guerra. No entanto, a reciprocidade não precisa ser imediata e equilibrada. Há trocas complexas e indiretas nas quais a reciprocidade não é feita entre os mesmos parceiros.
A frase com a qual iniciei este post expressa a ruptura da regra da reciprocidade, do princípio que regula a troca – dar, receber e retribuir, pois aquele que dá pode receber como retribuição o ódio, a negação ou a não reciprocidade daquele que foi beneficiado. A isto damos às vezes o nome de ingratidão, que também faz parte do sistema e demonstra o outro lado da moeda, ou seja, a dádiva aceita e trocada, a base da aliança.
Vou contar uma história que marcou minha vida e me fez pensar nestas regras. Meu pai foi um dos fundadores da física no Brasil e quis a história que ele fosse convidado a integrar a comissão que estabeleceu os princípios para a criação do Conselho Nacional de Pesquisa, hoje Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), cuja principal função era, como até hoje, o apoio à pesquisa científica. A lei n° 1.310 de 15 de janeiro de 1951, que criou o CNPq, estabeleceu a responsabilidade deste órgão pelo monopólio estatal do comércio externo de minerais estratégicos e fixou restrições à venda dos mesmos. Uma das riquezas retiradas das praias do litoral brasileiro, e levada para o exterior sob forma de lastro de navio – sem que o Estado nada recebesse em troca – foi a areia monazítica que contém urânio, tório, bem como outros elementos químicos raros de elevado valor para várias aplicações tecnológicas. A lei coibiu esta prática e marcou o início da luta pela regulamentação das atividades de extração, beneficiamento e comercialização dos minerais estratégicos brasileiros, dentre os quais a monazita.
O tema da proteção aos minérios produzia intensos debates desde o final dos anos 1940 e se intensificou nos anos 1950 com a luta pelo uso pacífico da energia atômica. Havia posições divergentes e o grande poeta e empresário Augusto Frederico Schmidt era um dos envolvidos na discussão liderada por físicos, químicos, geólogos e técnicos. O poeta e o físico Joaquim da Costa Ribeiro trilhavam caminhos diversos na discussão até que, no meio do furacão, os dois se encontraram e meu pai levantou-se de onde estava para cumprimentar Schmidt, fazendo deste gesto um sinal de aliança e mostrando-lhe que as divergências não significavam o rompimento da amizade e admiração que sentia pelo grande poeta.
Quando meu pai faleceu, aos 54 anos, Schmidt, um dos que fizeram o discurso fúnebre, mencionou outra ocasião em que estivera naquele mesmo cemitério, no enterro de minha mãe, falecida prematuramente, três anos antes. O poeta lembrou que entre todos os muitos amigos presentes à cerimônia de adeus, meu pai, na volta do funeral, o escolhera para acompanhá-lo, e falou sobre o amor e sobre a dor de meu pai naqueles minutos em que o amparara. Na saída do cemitério, logo depois daquelas palavras incomensuravelmente belas, o poeta chamou meu irmão mais velho que se tornou, com apenas 24 anos, tutor dos quatro irmãos menores de idade e disse: “Sergio, que o supermercado Disco seja a sua dispensa.” Schmidt era dono dessa grande rede de supermercados do Rio de Janeiro.
Foi assim que os filhos de Joaquim da Costa Ribeiro conseguiram sobreviver depois da morte do pai tendo o pão de cada dia ofertado pela generosidade do poeta até sua morte. Nunca pude retribuir a dádiva como gostaria e como seria o correto enquanto Augusto Frederico Schmidt viveu. Até hoje nele penso com enorme gratidão e fui pela vida tentando retribuir o presente, na medida das minhas posses, numa reciprocidade indireta. O poeta me deu a possibilidade de sobreviver materialmente e me dedicar aos estudos com mais facilidade. No entanto, os anos em que a nossa dispensa foi o Disco me legaram, mais do que o pão de cada dia, o sentimento de humildade do receber e a necessidade de retribuir.
Mas nem sempre a história tem esse final. Há muitos casos de rompimento da reciprocidade o que reforça a sabedoria do dito popular: “Que bem vos fiz para que me quereres tão mal?”
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