Escrito por Gilvander Moreira |
"A saúde é direito de todos e dever do Estado.” (Art. 196 da CF/1988) Desde 1963, há 49 anos, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), anualmente, durante os 40 dias da quaresma, promove a Campanha da Fraternidade (CF), que tem colocado para estudo, reflexão e ação assuntos que são grandes desafios – clamores ensurdecedores - no seio da sociedade. O Tema da CF/2012 é "Fraternidade e Saúde pública"; o lema, "Que a saúde se difunda sobre a terra!" (Eclo 38,8). Somos convidados a conhecer as entranhas da realidade do SUS, visitar pronto-socorros, ouvir as pessoas doentes que esperam muito para fazer exames e conseguir uma vaga para cirurgia. É hora de ouvirmos o apelo de 150 milhões de brasileiros que só tem como rara possibilidade de acessar saúde pública o SUS. A Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu a saúde não como “ausência de doenças”, mas como “um estado de completo bem-estar físico, mental, social e espiritual” (1). Levada a sério, esta definição coloca em questão a base da medicina moderna. Em nossos hospitais e clínicas, quantos médicos e enfermeiros compreendem a saúde de modo integral? Onde as pessoas são atendidas, visando a saúde não só física, mas também mental, social e espiritual? A medicina de órgãos, por si só, é incapaz de resgatar saúde integral. A saúde depende também de paz interior, de equilíbrio entre a pessoa e o seu ambiente social e, finalmente, da relação entre o ser humano e o universo. Toda doença tem conexão com a força vital e espiritual do universo. Os gregos ensinavam que a “simpatia” entre as partes do corpo e os elementos da natureza fará com que se possa encontrar remédio para tudo. Basta colaborar com a natureza. Povos indígenas, nas margens do lago Titicaca, no altiplano peruano, dizem que todo ser humano tem três almas: a física, a interior e uma que nos liga ao universo. A pessoa fica doente quando “perde” uma destas almas. A cura consiste em recuperar a alma perdida. Infelizmente, o cristianismo incorporou da cultura ocidental uma visão dualista que fragmenta corpo e alma, matéria e espírito. Privilegia, assim, um racionalismo abstrato que faz da religião mais um sistema de crenças intelectuais do que um caminho de amor e integração. Os evangelhos da Bíblia relatam que Jesus enviou os seus discípulos e discípulas para anunciar o Reino de Deus, curando as doenças e expulsando o mal que tomava conta das pessoas. O galileu de Nazaré, pela ternura e solidariedade, curou paralíticos, perdoou pecados para que as pessoas doentes se sentissem integradas com seu eu mais profundo, com Deus, um mistério de amor que nos envolve, com a comunidade e com toda a biodiversidade. O universo tem a cura para toda doença. A saúde mais profunda está escondida no fundo do coração de todo ser humano. Unindo as cordas do universo e do coração reencontramos saúde e salvação. A Constituição Federal de 1988 (CF/88) afirma: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (Art. 196). No caso de crianças e adolescentes, o direito à saúde deve ser assegurado com "absoluta prioridade” (Art. 227). Temos, no Brasil, dois sistemas de saúde: a) um público, o SUS, para os pobres; b) outro privado, o dos planos de saúde, que atende 25% do povo, cerca de 50 milhões de pessoas. Milhares de pessoas pobres se sujeitam a continuar empregadas em grandes empresas porque estas oferecem plano privado de saúde. Ou seja, o caos no SUS leva empresas a arrochar salários, pois seguram trabalhadores ao ofertarem planos privados de saúde. Na luta por saúde pública, tivemos várias conquistas: a) a criação e organização do SUS, que é um projeto bom, mas sobrevive desde seu nascimento na UTI, pública; b) a criação do Programa de Saúde da Família (PSF), com ênfase na prevenção, inspiração vinda do sistema de saúde de Cuba; c) o combate contra a AIDS, elogiado pela OMS. Mas a CF/88 está sendo desrespeitada cotidianamente, pois os lindos artigos 196 e 227 são pisoteados, isso sem contar o princípio do respeito à dignidade humana e tantos outros prescritos na nossa Carta Maior. Após 11 anos de morosa tramitação no Congresso Nacional, a Emenda Constitucional 29, que regulamenta os investimentos do Estado em saúde pública, foi sancionada pela presidenta Dilma, em 16/01/2012. Em saúde pública, a União deverá investir de 6 a 7% do orçamento (PIB), mas está investindo apenas 3,5% - Cuba investe 18%; os estados deverão investir pelo menos 12% e os municípios, 15%. Mas a maioria dos estados e dos municípios não investe ainda os valores fixados na Emenda 29. Especialista em Saúde e professora da UFRJ, Ligia Bahia, denuncia com veemência: “Aprovar a Emenda 29 sem que a União tenha que dispor de mais recursos para a Saúde é uma tragédia. Do jeito que aprovaram, a Saúde vai ter mais R$3 bilhões; se fossem os 10% da receita da União, o aporte seria de R$40 bilhões. Foi bom terem definido o que são gastos com Saúde, mas os R$3 bilhões a mais não terão grande impacto”. Para ela, o SUS padece por conta do subfinanciamento e dos problemas de gestão. “Isso caracteriza o nosso subdesenvolvimento”, diz Ligia, que vê o veto ao artigo que determinava a atualização automática dos recursos da Saúde quando houvesse revisão do PIB como "pão-durismo" do governo federal. Grande parte das doenças que afetam a vida das pessoas tem como causa a injustiça social, o capitalismo, a falta de reforma agrária, falta de apoio à agricultura familiar que produz alimentos na linha da agroecologia, as terceirizações no mundo do trabalho – privatização na prática -, a “automóvelatria”, a “motolatria”, o escasso investimento em políticas públicas, a precarização da educação pública, a falta de ética nos programas televisivos e a devastação da biodiversidade. Tudo isso feito propositalmente para que uma minoria lucre, lucre, lucre e a maioria padeça estresse, depressão, câncer e obesidade, que no último caso já atinge 15% da população. A Pastoral da Criança, com mais de 140 mil mulheres voluntárias acompanhando gestantes e crianças recém-nascidas com soro caseiro e multimistura, tem reduzido muito a mortalidade infantil, mas hoje o tráfico de drogas – maconha, cocaína, crack – está causando uma verdadeira mortandade de adolescentes e jovens, mais de 30 mil por ano, mais de 300 mil nos últimos 10 anos. No nosso artigo “VI FÓRUM SOCIAL MUNDIAL: Um mundo democrático-participativo e socialista em construção”(2) de fevereiro de 2006, consta o seguinte: “Na Venezuela, atualmente, existem cerca de 20 mil médicos cubanos alavacando uma revolução no sistema público de saúde. São responsáveis pelo atendimento primário da população, algo parecido com o médico de família. Estão nas favelas e bairros pobres; lá vivem e atendem com competência e dedicação os pobres. Fomos ao encontro de alguns deles. Três jovens camelôs dizem com veemência: "Por mais de 50 anos os médicos venezuelanos recém-formados se recusaram a ir para o interior, para os bairros, para a periferia. Só queriam ficar na capital, ganhar dinheiro às custas da dor. Agora, com Hugo Chávez, eles tiveram sua chance de ajudar o povo. Não quiseram. Então foi preciso apelar para a solidariedade. Vieram os médicos de Cuba e estamos tendo acesso à saúde nos lugares mais distantes e pobres". Em conversa com duas médicas e um médico, em favelas de Caracas, ouvimos, entre tantas coisas, o seguinte: “Não viemos aqui para a Venezuela para ganhar dinheiro, mas por amor ao próximo. Estudamos medicina para cuidar das pessoas, nunca para ganhar dinheiro. Quando terminamos o curso de medicina em Cuba, fazemos um juramento de cuidar sempre da vida ameaçada em Cuba e em qualquer país do mundo. Quando se é de esquerda, socialista, somos mais cristãos, pensamos mais no próximo. Todo o povo do mundo é meu próximo, é minha família. Somos e devemos nos comportar todos como irmãos. Vivo para servir a sociedade. Aqui na Venezuela, recebemos apenas uma ajuda de custo para pagar metrô, ônibus coletivo e comprar alimentos e alguma coisa mais necessária.” Na Venezuela, o salário recebido pelos médicos cubanos não chega a um salário mínimo da Venezuela, que em fevereiro de 2006 era cerca de R$405,00, melhor que o do Brasil. Há muitos anos, Cuba envia milhares de médicos para cuidar de saúde pública na Venezuela. Em contrapartida, a Venezuela entrega petróleo para o povo cubano. Segundo dados do Ministério da Saúde, há hoje no Brasil 30 mil equipes de médicos da família atuando no Programa de Saúde da Família (PSF), mas só em 1.500 equipes há médicos. O plano do governo Federal é em 2012 chegar a 40 mil equipes para atender cerca de 75% da população: 150 milhões de brasileiros. Logo, estão faltando 38.500 médicos da família. Por que faltam médicos no PSF? Por que continua valendo no Brasil um decreto do ex-presidente FHC que proibiu o reconhecimento no Brasil de cursos de medicina feitos em Cuba? Urge denunciarmos as ações e opções dos governos e da classe dominante brasileira que implementam política econômica que apóia a produção de alimentos através do agronegócio, com uso indiscriminado de agrotóxico, envenenando, assim, a comida do povo (3). Indignado, perguntamos: por que a presidenta Dilma cortou 55 bilhões de reais do orçamento de 2012, estando entre os cortes 5,4 bilhões de reais do Ministério da Saúde? Em plena CF sobre a saúde pública, é inadmissível tal corte. Exigimos que o governo federal repense sua política econômica neoliberal e volte atrás no corte do orçamento. Ao invés de corte de 5,4 bilhões do Ministério da Saúde, exigimos que se triplique o investimento em saúde pública. Não podemos limitar nossa ação à solidariedade com quem está doente. O cartaz da CF/2012 é bonito, mas poderia ser melhor. Numa sociedade racista e com idosos pisados na sua dignidade, não foi uma feliz escolha apresentar como cartaz da CF/2012 um jovem médico branco, de pé, como “bom samaritano” sorrindo para um idoso negro, sentado, na posição de doente. Os idosos e negros têm direito à saúde pública de qualidade e não podem ser considerados objeto da solidariedade de jovens brancos( 4). Sinto saudade dos criativos cartazes das CFs feitos por artistas populares da Caminhada, que são dignos de nossa admiração. Talvez fosse melhor um cartaz sugerindo caminhos para a saúde pública de forma integral, o que passa também por justiça social, por alimentação saudável – sem agrotóxico -, por agroecologia e pela infinidade de terapias naturais, holísticas e alternativas, além da vivência de uma espiritualidade que cura. Um dos objetivos da CF/2012 é "despertar nas comunidades a discussão sobre a realidade da saúde pública, visando à defesa do SUS e a reivindicação de seu justo financiamento” (texto base CF 2012). Acrescento, resistir contra a privatização da saúde, que acontece via planos privados de Saúde, PPPs, terceirizações, lobbies da indústria farmacêutica e de empresas que lucram com a produção de doenças. Enfim, para que a fraternidade social seja verdadeira é preciso saúde pública de qualidade, um grande desafio que devemos abraçar. Notas: [1]) Definição de 1946, sendo que em 2003 a OMS acrescentou a dimensão espiritual. 2) De frei Gilvander Luís Moreira e Delze dos Santos Laureano, publicado na Revista HORIZONTE TEOLÓGICO, ano 4 n. 7 jan/jun 2006, pp. 151-161, e também disponibilizado na internet. 3) Assista ao Filme “O veneno está na mesa”, de Sílvio Tendler, disponibilizado no youtube. 4) Apenas 2% dos médicos formados na Faculdade de Medicina da UFMG, em Belo Horizonte, são negros. |
segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012
Fraternidade e Saúde pública: um grande desafio
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