- Em "A Pele que Habito", que concorreu à Palma de Ouro em Cannes este ano, Pedro Almodóvar dialoga um tanto esquizofrenicamente com os dois lados de sua obra intensa e carnal, que vem construindo desde o primeiro longa, "Pepi, Luci, Bom e outras Garotas de Montão" (1980).
Convivem dentro da história tanto o diretor iconoclasta da primeira fase, em que realizou filmes aguerridos como "Labirinto de Paixões" (1982), "Matador" (1986) e "A Lei do Desejo" (1987) - numa época em que não dispunha ainda de orçamentos que lhe garantissem a melhor qualidade técnica -, quanto o cineasta maduro da fase mais recente, de algum modo obcecado por explicitar suas referências, como se viu no recente "Abraços Partidos" (2009).
O desejo de uma volta à pulsão do início de sua carreira evidencia-se igualmente no retorno do ator Antonio Banderas, longos 22 anos depois de "Ata-me!".
Como raríssimas vezes antes (a outra ocasião, em "Carne Trêmula", de 1997), Almodóvar inspirou-se em obra alheia para compor seu roteiro, neste caso, o livro "Mygale", de Thierry Jonquet, que leu há dez anos. Dele guardou a figura do pai que conduz uma vingança, aqui por um estupro cometido contra sua filha, temperando-o com elementos científicos ligados a manipulações genéticas - um assunto que soa estranho no universo almodovariano, mas estranheza é a matéria-prima desta história.
Banderas é esse pai, Robert Ledgard, um cirurgião plástico que pesquisa a criação de pele artificial, depois de perder a mulher, gravemente queimada num acidente de automóvel. Na verdade, há outros fatos ligados à morte da mulher, bem como ao suposto estupro da filha (Blanca Suárez).
A vingança contra o estuprador (Jan Cornet) é o segmento que reserva os elementos mais drásticos e bizarros. É quando entra em cena Vera (Elena Anaya, que já trabalhara com o diretor antes em "Fale com Ela"), uma mulher de identidade misteriosa, que é ao mesmo tempo cobaia e prisioneira do cirurgião num luxuoso bunker, onde ela é vigiada e atendida 24 horas por dia por Marilia (Marisa Paredes).
Há uma referência direta ao filme "Os Olhos sem Rosto" (1960), do francês Georges Franju, um parentesco que Almodóvar assume sem problemas, e também ao famoso personagem do dr. Frankenstein, de Mary Shelley - já que em todos os casos há um homem da ciência ultrapassando limites, brincando de Deus não só por mera ambição, mas em nome da primazia de uma conquista, ou da superação de uma culpa insuportável.
Admitidas todas as inspirações e os cruzamentos de gêneros - e Almodóvar não nega que hoje o thriller é seu favorito, firmando uma disposição em ser uma espécie de Hitchcock latino de nossos dias -, há todos os indícios da busca de uma nova transgressão, numa chave diversa daquela que marcou seus primeiros filmes. Neste sentido, nenhum intérprete mais adequado do que Antonio Banderas, impregnado de uma espécie de horror frio que percorre o filme, em que personagens, como Robert e Marilia, são capazes de dizer as coisas mais criminosas como se fossem normais. Com a insensibilidade que só os psicopatas podem ter.
Esta frieza parece estranha no ninho de Almodóvar, e o que é pior, algo que não resulta totalmente convincente. Na revelação da verdade sobre Vera, Almodóvar arrisca-se numa ruptura de limites, mas perde a medida e toca a ponta do mau gosto.
Falta um toque da sua boa e velha ironia, entre outras coisas. Por isto, os fãs de melodramas com outra temperatura, como "Tudo sobre Minha Mãe" (1999), "Fale com Ela" (2002) e "Volver" (2006), poderão, é certo, sentir-se traídos pela nova investida do diretor.
Um outro problema está nas referências ao Brasil, especialmente aquela relativa ao personagem, Zeca/Tigre (o ator espanhol Roberto Álamo), que resulta na caricatura da caricatura. Chega a ser ofensivo, ainda mais pela intimidade de Almodóvar com o Brasil, país que visita regularmente, que o cineasta formule um personagem grotesco nestes termos. O outro vestígio do país, este mais positivo, é a música "Pelo Amor de Amar", cantada em português pela espanhola Ana Mena
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